Mais Black do que Bloc.
- Tem que
protestar mesmo, só tem ladrão, muita coisa errada, o povo tá deixando de ser
bobo.
- Eu é que
não me meto no meio daquela confusão não, cheio de baderneiro quebrando as
coisas.
- Ah esses aí
a polícia tem que cair de pau mesmo, bando de desocupado, quebrando loja,
tacando fogo nas coisas... Isso aí e gente que quer é bagunça, confusão. Tem que
manifestar, mas em quebradeira.
- Tu fala aí
essas coisas, mas duvido que vai lá manifestar.
- Vou não,
isso é pra juventude, a patroa vai liberar mais cedo pro pessoal ir, mas eu vou
é pra casa ver meus meninos.
A conversa
das duas mulheres entra pelos seus ouvidos misturando-se ao som metálico do
trem lotado deslizando pelos trilhos. Marlon fecha o livro. Ler nunca foi algo
que lhe desse prazer, ainda mais aquelas letras pequeninas espremidas nas
páginas amareladas, como as pessoas espremidas nos vagões do trem. A maioria delas mergulhadas nas telas de seus
próprios celulares, outras como as duas senhoras ao seu lado passam a viagem a
tagarelar, outros conseguem, mesmo de pé e com o trem balançando, jogar cartas.
Giza lhe deu
esse livro da última vez que se encontraram. Ela sempre foi de ler, garota
inteligente, estudiosa que conseguiu driblar todas as dificuldades e ingressou
numa faculdade. Ele tentava ler o livro para ter algo com o que conversar com
ela, como faziam quando eram mais novos. Mas aquelas palavras não lhe diziam
muita coisa, letras espremidas no papel carregando ideias que ele tentava sem
sucesso espremer para dentro de sua cabeça. Desistiu... Talvez não tenha
nascido para aquilo mesmo.
O dia passa
rápido no trabalho, há uma certa ansiedade nas pessoas do centro da cidade
nesse dia. O patrão mandou fechar a loja uma hora mais cedo, para montarem um
tapume improvisado, tentativa de proteger a fachada.
- Parece até
que vai ter bloco – diz um amigo do trabalho
- O patrão
está com medo é do quebra-quebra, black bloc e tal. Responde outro.
Marlon fica
calado, como sempre.
Terminam o
tapume e ele se despede dos companheiros de trabalho. A s ruas já estão se
enchendo de gente, mas nesse dia a maioria das pessoas não está apressada para
retornar para casa, pelo contrário elas estão vindo de várias regiões da cidade
para o centro.
Ele encontra Giza
e os amigos dela num boteco. Os cumprimenta com apertos de mão e a ela com um
abraço. Uma garota está falando, dando instruções. Algo sobre não se
precipitarem, sobre esperar a policia agir primeiro, sobre câmeras... Ele não
presta atenção. Está observando Giza, ela está atenta a outra menina que
discursa e de braços dados com o pela-saco barbudo, um professor da
universidade que toma a palavra.
O Barbudo é
um pouco mais velho se chama Bruno, fala sobre sua experiência como ativista,
de como já enfrentou a policia diversas vezes, mostra cicatrizes. E continua um
discurso motivacional, mas Marlon não está mais ouvindo, sua atenção está de
volta em Giza e no olhar de admiração que ela lança ao orador. Um olhar que ele
nunca recebeu.
O Grupo sai
do boteco e se mistura a multidão em marcha. Eles passam por pessoas com
cartazes “Fora Cabral”, “Não vai ter Copa”, “Fora Dilma”, “Fora Renan” “Fora
Feliciano”, “Mais educação, Saúde e coisa e tal”. Na multidão há de tudo:
Senhoras animadas, Meninas tirando selfies, amigos bebendo como se estivessem
numa festa. Muitas vozes, muitas causas, ou nenhuma.
Giza está
sorrindo, grita palavras de ordem, ergue os punhos. O barbudo está com a cara
fechada.
- Olha só a
pequena burguesia brincando de protestar, posando para foto de facebook. “O
gigante acordou” eles escrevem nos cartazes. Mas nós nunca dormimos, estivemos
sempre aí lutando em defesa dos pobres dos oprimidos por esse sistema cooptado
pelo capitalismo neoliberal. Eles dão volume às manifestações, mas também tiram
o foco dela e repercutem esse discurso de vandalismo propagado pela grande
mídia, como se a polícia não fosse violenta por si só, como se só agisse com
violência quando agredida.
Giza concorda
efusivamente com ele, O que aumenta a antipatia que Marlon sente do Barbudo.
Ele tem certeza que não compreendeu tudo o que foi dito, mas se sente impelido
a discordar. Política para pobre é só quando candidato aparece na comunidade
oferecendo asfalto em troca de voto. E quem o pela-saco acha que é para
entender de violência policial? Nunca levou um tapa na cara só por ter “cara de
bandido”, nunca foi obrigado a desembarcar de um ônibus, nunca deve ter tido a
casa invadida por polícia. Na favela as balas não são de borracha e apanhar da
PM não é motivo de orgulho é humilhação.
- E quem te
deu procuração para falar pelos pobres, professor? - De forma inconsciente, ele
o chama de professor para deixar bem claro que há uma diferença entre eles, que
não são iguais, da mesma maneira que se refere a alguém como “doutor”.
Bruno o olha
com certa supresa, mas lhe responde com ar professoral - Não precisamos de procuração,
é dever do homem esclarecido agir diante da injustiça. Quando luto para
melhorar o mundo é para todos e não só para mim e o maior problema do mundo é a
desigualdade de riquezas.
Giza sai em
defesa dele: - Marlon, É preciso compreender como o mundo funciona, com a
sociedade é manipulada pelos poderosos, Olhe ao redor, olhe quem são as pessoas
que estão aqui. Nenhum dos nossos amigos que eu convidei veio, só você.
Precisamos nos engajar mais e lutarmos por nossas próprias causas sim, mas de
forma consciente para não sermos manipulados. Vou montar um grupo na nossa
comunidade e o Bruno está me ajudando nisso. Leia o livro que lhe dei que você
vai começar a entender.
- Toda essa
gente está aqui por algum motivo, e você Marlon? Porque você está aqui? – Diz o
barbudo o encarando fortemente.
Marlon não
tem uma resposta articulada para dar então deixa a raiva e a frustração falarem
por ele – Vim porque a Giza me chamou... E porque a minha vida é uma merda
desde que me entendo por gente, então se alguém aqui tem o direito de gritar e
quebrar essa porra toda, esse alguém sou eu!
Os gritos e
palavras de ordem se intensificam é impossível continuar a conversa e Marlon
agradece por isso, em um ponto cantam o hino nacional, em outro gritam contra a
polícia. A multidão se aproxima da prefeitura.
As pessoas se
espremem como no trem, as palavras que eles dizem se misturam e, como nas
páginas do livro, se tornam indecifráveis para Marlon é tudo um zumbido. Em
algum lugar um morteiro explode. Sua deixa.
Ele tira da
mochila uma outra camisa e cobre o rosto, se torna invisível mais uma figura
sem rosto e identidade no meio da multidão, como sempre foi.
A confusão começa.
Ele recolhe pedras do calçamento. As atira conta polícia. Morteiros explodem no
céu e na calçada, as pessoas correm para longe ele corre em direção aos soldados,
enfrentando.
Preto, pobre
e suburbano, ele sente que hoje pode dar o troco. Cada pedra lançada é uma
lembrança: o irmão preso, o esculacho com tapa na cara, a avó morta no corredor
do hospital. Quando uma vidraça de agência bancária explode, ele se lembra das
inúmeras vezes barrado na maldita porta giratória. Hoje é a porta deles que
está sendo arrombada.
Outros
Mascarados xingam e atiram morteiros e pedras, Ele está entre eles, mas ao
mesmo tempo está só, como sempre esteve.
Ao seu lado
outro mascarado cai atingido por uma bala de borracha. A nuvem de gás
lacrimogênio sobe espessa, seus olhos ardem e sua visão fica nublada, como ela sempre
esteve. A multidão se dispersa de vez enquanto a polícia avança... E ele a
encara pronto para se defender apenas com a angustia, a raiva, a frustração e suas
boas intenções, como sempre fez.