terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Inveja

Enfiei o dedo no nariz, cavuquei até tirar com a ponta da unha uma meleca ressecada e amarelada, olhei bem, era grande pra cacete, nojenta. Peguei o dedo sujo e enfiei no copo, sacudi lá até ela se dissolver no suco. Saí da cozinha, fui até o balcão e entreguei o suco para aquela lorinha metida, escrota do caralho. Ela nem olhou na minha cara de novo, vai beber meleca a filha da puta.
Sei lá porque mas a maioria dos fregueses me dá raiva. A vadia queria deixar uns trocados no balcão como pagamento, disse a ela que pagasse no caixa, ainda fez uma cara nojenta de impaciência. Eu devia era ter molhado meu pau naquele suco.

Eu tenho um emprego de merda eu sei. Trabalhar na porcaria de uma lanchonete não é grandes coisas, tô sabendo, mas é o que eu tenho. Se tivesse coragem, eu botava uma arma na cintura e saia por aí tomando dinheiro desses riquinhos, mas falta disposição. Falta estudo, falta a porra toda. Então tô aqui nessa merda de lanchonete, uns três anos já.
A grana é pouca mas dá pra eu me virar, não sou casado e fujo dessa desgraça. Embuchei uma mina aí, uns anos atrás, assumi não. Sei que nasceu menino, mas nem botei os olhos nele, mora longe agora, deixa lá que o mundo cria. Foi assim comigo e é assim com um monte de gente. Ninguém facilita minha vida, não me sinto obrigado a facilitar a de ninguém.

Trabalhar na lanchonete é um saco, eu fico nessa porra de balcão esperando algum boyzinho pedir um suco, aí grito pro paraíba lá dentro da cozinha que prepara a merda do suco, passa pra mim por uma janelinha na parede, eu entrego pro cara e ele paga no caixa. O chefe nunca deixa a gente botar mão em dinheiro, faz bem ele. Tomás é o nome do gerente, o patrão mesmo a gente quase não vê, o cara tem várias lanchonetes pela cidade. Tomás é o testa de ferro, toma conta da porra toda, ganha até bem o safado.

Como eu disse, é uma vidinha de merda mas da para levar. No começo dos mês tem pagamento, dia de glória, com o bolso cheio faço a festa. Muita bebida, comida e putas. Pelo menos um dia no mês eu sei que vai ser de alegria, depois volta tudo a mesma merda de sempre: contas, trampo, busão cheio, etc.
Chego no trabalho já pensando na hora de sair, enrolo na hora do almoço, me escondo quando tem que carregar caixa para o estoque, Não é nem tanto preguiça, só não vou ficar me esfolando por aquela merreca que pagam a gente.

A galera que trampa aqui comigo é gente boa, até mesmo o Tomás, não tenho do que reclamar. O único cara que eu não gostava é o Edivaldo. Não sem nem explicar porque ele me irritava... Pensando bem, sei sim.
Edvaldo tinha chegado a pouco tempo do interior no Ceará. O bicho é baixinho, feio pra cacete, e tem aquele sotaque horrível que não dá pra entender nada do que ele diz. O que enervava de verdade nele era a felicidade. O cara tava sempre sorrindo, sempre simpático com os fregueses, mesmo quando os moleques ficavam tirando sarro da cara dele. Estava sempre disposto a ajudar, puxa saco do cacete.

Como é que podia ser feliz? O cara tinha um salário de merda, e um trabalho de merda, até lavar banheiro ele fazia satisfeito. Mora num barraco horroroso e é casado com uma magrela feia dos dentes tortos, e ainda assim estava lá sorrindo toda manhã na hora de abrir a loja.
Aquilo me irritava demais. Era pra ele ser o mais revoltado de todos nós, o mais inconformado, o menos satisfeito. Aquela cara de bobo alegre me tirava do serio, aquelas piadas sem graça que ele fazia com os fregueses me davam nos nervos. Aquela atitude humilde e servil me causava enjôo.
A vontade era de sacudir e gritar no ouvido dele: Do que você tá rindo? Meu irmão, tu é um merda! Acorda cara!

Eu nunca disfarcei minha antipatia pelo cara, implicava com ele o tempo todo, caçoava na frente dos fregueses, que morriam de rir e o idiota ria junto, ria de si mesmo, é bem provável que o estúpido nem entendesse a ofensa. Eu espezinhava o sujeito e ele nem ligava, e isso me emputecia ainda mais. Eu tentei deixar para lá, mas não conseguia, não dava pra suportar ficar no mesmo ambiente que ele. O troço foi virando um ódio.
Dia de pagamento íamos todos para a farra, o mané ia para casa dar o dinheiro todo na mão da esposa feiosa. “Ela lida com esse negócio de dinheiro, melhor do que eu”. Babaca!
Até cheguei ao ponto de cantar a magrela dentuça dele, Pensei em fazer a baranga dividir a merreca dele comigo em algum motel barato por aí. Mas a feiosa me dispensou disse que amava o traste e só para evitar confusão não ia contar nada para ele.. Porra! Não sou nenhum galã de novela, mas melhor do aquele merda eu sei que sou. Isso foi a gota d'água.

Fiquei muito puto da vida. Logo no outro dia aproveitei uma distraída do Tomás e meti a mão em uma nota de cinquenta reais do caixa. Subi pro estoque e enfiei a grana e um pacote de pão na mochila do Edivaldo. No fim do expediente, na hora de fechar o caixa, Tomás deu falta da grana. Eu já conhecia o procedimento: Revistar as bolsas de todo mundo.
Acharam o pacote de pão e o dinheiro escondido na mochila do Edivaldo.
Eu ria por dentro enquanto o otário chorava tentando se explicar, jurando que era honesto, que nunca faria aquilo, que preferia passar fome a roubar.
Vi a pena na cara do Tomás, a vontade do chefe era perdoar o cara, mas ele não podia abrir o precedente, não com todos os funcionários vendo que poderiam tentar roubar e ser perdoados. Meteram um justa causa no Edivaldo.

Ele chorava sentando no meio fio da calçada, resmungando que havia sido injustiçado. Que não merecia aquilo.
Eu sentei do lado dele, coloquei a mão no seu ombro e disse: “ Não tem nada a ver com merecimento...A vida é assim mesmo: Injusta. Por mais pouco que a gente tenha, a vida dá sempre um jeito de tirar”.
Ensinei a ele uma valiosa lição de vida. Duvido que ele volte a ser o sujeito satisfeito e feliz que era, Afinal, será que ele pensava que era especial? Que era melhor? Não podia deixar o coitado viver assim iludido, pensando que a vida pode ser boa.
Nesse mundo cão, nessa nossa vidinha de merda ninguém tem o direito de ser feliz.

4 comentários:

  1. Esse texto passeou pelo escatológico até chegar na 'velha' moral, né?
    Caim, Abel, pecados capitais, inveja e tal...
    Mas esta peçonha aqui é uma pérola da vilania global: “ Não tem nada a ver com merecimento...A vida é assim mesmo: Injusta. Por mais pouco que a gente tenha, a vida dá sempre um jeito de tirar”. O figura sacaneia e depois, ainda vem dar uma de moralista pra cima do mané do Edivaldo (que deve achar que o figura é amigo).
    O que gosto de tua escrita é que você é bem livre, escreve sem preocupação. E acho, Fábio, que ocorre o contrário do que você escreveu no comments, lá. Eu é que não consigo escrever grandes contos sem me perder. Mas um dia eu chego lá...Eu sou roda presa, mão amarrada, você , não.
    Abraço.

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  2. A estória de mais um assassinato. São tantos. Todos os dias. Haverá tantas vagas nos cemitérios locais?

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