quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Triunfo

Foi há algum tempo. Se fosse possível lembrar, ele diria que aconteceu num dia nublado.

Sim. O céu estava cinza chumbo, tal como o asfalto que passava veloz por baixo de suas pernas. A magrela zunia pelas ruas estreitas do bairro. Havia o prazer e a alegria que sempre se manifestavam nessas ocasiões.

Ambos se entendiam perfeitamente, menino e bicicleta eram como um só. Mão e guidão, pés e pedais. Centro de gravidade único. Tão natural era essa união que quando descia da bicicleta não possuía o mesmo equilíbrio e agilidade, costumava tropeçar nas próprias pernas. Lento e desengonçado.

Se moviam em conjunto perfeito, os movimentos de precisão milimétrica espantavam pedestres e irritavam os motoristas.

Não havia nada que ele fizesse melhor. Na verdade não era bom em mais nada, mediocre na escola, péssimo nos esportes, fraco e covarde. Mas em cima da bicicleta era o tal, era rei. Por isso mesmo passava muito tempo em cima dela e o talento natural se aperfeiçoava pela prática diária.
Montado era ousado e corajoso, não tinha medo de errar ou se machucar e não eram raras as vezes que se machucava. Tremia só com a possibilidade de receber um soco ou uma bolada. Mas não temia os tombos muito mais dolorosos que sempre aconteciam quando tentava uma manobra nova. Caía, levantava e tentava de novo, até conseguir e depois persistia até dominar totalmente o movimento.
Para cada cicatriz que tinha no corpo havia o arranhão correspondente na bicicleta, espécie de extensão do corpo, orgão externo. Que era tratado muito melhor do que o corpo real de carne e ossos. Cada arranhão maior era disfarçado com um novo adesivo. Raios e aros cromados eram exaustivamente polidos durante a limpeza diária após cada passeio. Peças desmontadas e remontadas, lubrificadas quando necessário e trocadas sempre que possível. Quadro, garfo, correntes, coroa, cabos, selim. Cuidado e carinho com todas as partes.

O Céu pesado ameaçava desabar a qualquer momento, a contra gosto pedalava de volta para casa.
Fez a curva e entrou na rua dois, ladeira gostosa de descer. Sem as mãos porque não precisava delas para se equilibrar.
Percebeu o grupo de garotas conversando na calçada, entre elas Lidiane a mais linda, a menina por quem suspirava há meses. Sonhava com a pele morena, os olhos puxados, o ar de índia sapeca. Nunca se aproximou dela, amava-a platonicamente. Estava no conjunto das coisas inatingíveis.

Foi num estalo. Pensamento e ação foram praticamente simultâneos. Ato reflexo beirando o instintivo. Tomou velocidade e, aproveitando o quebra-molas que parecia estrategicamente localizado, decolou. Primeiro a roda frente subiu, depois a traseira. Ambas no ar por infinitos décimos de segundo. Pousou. Inverso: primeiro a roda de trás tocou o chão depois a dianteira. Ainda se permitiu um desequilíbrio falso, presepada teatral para simular dificuldade, para dar a impressão aos espectadores da possibilidade de um tombo. A cereja no topo do sundae.

Seguiu pedalando rua abaixo, a felicidade explodindo no peito. Estava certo que manobra tão perfeita não poderia ter passado despercebida, sabia que as meninas estavam agora se perguntando quem ele era. Se espantando com sua ousadia, elogiando sua coragem.
Lidiane o viu, o percebeu, e o admirava. Podia sentir o olhar dela queimando em sua nuca, mas ele não se virou. Manteria a postura dos vitoriosos, não ia deixar que ela percebesse que o show foi para ela. Também não arriscaria se decepcionar caso ela, mesmo depois daquilo, ainda não o notasse. Preferiu acreditar que ela o olhava com ardente paixão.
Imaginava a manobra do ponto de vista das meninas, deve ter parecido incrível. Subira o que? Uns três ou quatro metros do chão? Aterrizara uns cinco ou seis adiante? Poderia ter saltado um carro se quisesse.
Se deixou levar pelos exageros da imaginação e do ego. Jurava que no auge do salto um raio de sol conseguiu furar a massa de nuvens escuras fazendo os aros da bicicleta brilharem de forma gloriosa. A fantasia serve para tornar a realidade mais interessante.

Peito inflado de orgulho, fez uma curva exageradamente aberta para entrar na rua seis.

Crash!

Acordou três dias depois no hospital. Deitado, pernas imobilizadas e cabeça enfaixada. Todo o corpo parecia dormente. Confuso encontrou o olhar choroso da mãe.
Contaram-lhe que havia sofrido um acidente, na esquina das ruas seis e dois. Colidira com um carro.
Saldo: um Traumatismo craniano e duas pernas quebradas e pequenas escoriações por todo o corpo. Partira o fêmur da perna esquerda em duas partes, colocaram parafusos e pinos. Recuperação lenta.
Nunca mais foi o mesmo. Não conseguia pedalar da mesma maneira pés e pedais não se entendiam, o equilíbrio não era o mesmo. Os centros de gravidade não se uniam. Os passeios na magrela já não eram tão interessantes, tão felizes. Acabou por abandona-la num canto da garagem.
Perdeu seu único talento.

Estava inconsciente de outra perda, também imensa. Sequela aparentemente sem importância.
Ficou sem a memória do dia em que saltou quatro metros de altura, seis metros à frente. Esqueceu do dia em que Lidiane o amou, esqueceu do gosto da vitória, do peito estufado de orgulho. Não havia testemunha capaz de descrever aquele momento. Simplesmente desapareceu.
Perdeu para sempre o dia em que o céu nublado se abriu e o sol o iluminou. Talvez o único dia de triunfo de toda sua vida.

3 comentários: