Orelhas de pé. Atento. Era preciso vigiar.
O dono ali, sentado no sofá. Cabia a ele protege-lo, Instinto, gratidão ou mero condicionamento, a origem da força de sua devoção não estava clara. Sua mente de cão não se importava com essas coisas, não devaneava. só vigiava, montava guarda. Puro propósito.
O dono tão tranquilo, distraído, tão desavisado dos perigos. O cão não, esse estava sempre alerta. Latindo ao menor perigo, e sempre eram muitos: os pássaros que insistiam em pousar no jardim, algum gato vagabundo invadindo seu território. Ou o pior inimigo: o outro homem vestido de amarelo e azul que de vez e quando tentava invadir sua casa.
Ali só entravam ele e o dono. Não haviam outros, não recebiam visitas, não haviam crianças para afaga-lo, para lhe atirarem bolas coloridas, ou qualquer outra brincadeira, fora assim desde sempre. Ele, o dono e a casa. Todo o resto era hostil, indesejado.
Ele como bom cão dava o alerta, latia demostrando que ninguém era bem vindo.
Não era de brincadeiras, era sério, sisudo, intimidador. O puro reflexo do dono.
Chegou àquela casa ainda filhote, para substituir um outro cão, mas ignorava o passado. Era apenas o presente, também não pensava no futuro. Uma refeição por dia, sempre a mesma hora, um banho por semana, sempre no mesmo dia. Tijela de água na área de serviço. Rotina imutável.
Só conhecia o quintal, nada além dos altos muros e do pesado portão. E assim cresceu treinado e moldado para proteger esse seu pequeno território.
E agora que o dono estranhamente não acordava, ele sentia que era preciso vigiar ainda mais. Guarda montada ao redor do sofá. Eventualmente se deitava aos pés imóveis do homem, mas a qualquer pequena perturbação as orelhas subiam novamente e se mostrava atento.
O tempo corria e outras necessidades se faziam presentes. Lambeu a mão do dono, mãos que o alimentavam desde de filhote. A fome e a sede apertavam, tornando-o mais agressivo, mais irritado, mas se recusava a deixar o posto.
Antes de cão era bicho, e viu-se obrigado a procurar por alimento e água. Afinal saco vazio vazio não para em pé, como poderia vigiar se não tivesse forças?
Apenas cretinices de um narrador humano. Seu cérebro canino não se ocupava com essas questões, o caso foi apenas que a fome e a sede eram mais urgentes, o instinto de autopreservação falou mais alto. Percorreu a casa, porta da rua trancada, não tinha como sair. Por sorte a tampa da privada estava levantada e pode pelo menos matar a sede. Mas a fome ainda estava lá. Farejou a cozinha, revirou lixeiras. Encontrou alguns restos sobre a mesa, teve que servir.
Outro dia já ia amanhecendo deitou-se aos pés do sofá de volta ao posto. E novamente ao menor ruido as orelhas subiam. Dormia, mas continuava atento. Durou pouco, a fome apertou.
Lambeu novamente a mão do dono, nada dele se manifestar, seu cheiro estava estranho, sabia que havia algo errado, mas precisava, guarda-lo protege-lo. Sempre foi sua única companhia, eram só ele e o dono.
Os dias passavam imutáveis, nova rotina, a fome e a sede ditavam as regras, determinavam os horários.
Os dois trancados na casa sozinhos. À noite seus instintos passaram a ser mais exigidos, ratos começaram a rondar o local, no inicio foram tratados como invasores e espantados aos latidos. Algumas noites depois se tornaram presas, comida fresca. Os farejava e tentava caça-los. Só que nesse jogo de caçada os ratos levavam vantagem, passaram a vida se escondendo de predadores e dos humanos, a seleção natural os tinha tornado furtivos e velozes, enquanto ele era animal doméstico, acostumado a ser alimentado. Barulhento e desajeitado. Os ratos ganhavam sempre.
Os restos de comida da cozinha escassearam rápido, já que agora eram divididos com os roedores. A fome era maior, em desespero subiu no colo do dono choramingando lambeu-lhe o rosto gelado e estático. Sentiu então um gosto bom, sentiu o sangue seco que lhe escorria pelo queixo e empapava o peito, lambeu tudo com voracidade, o estomago precisava ser saciado, lambeu as mãos, aquelas mãos que o alimentavam.
O cheiro era outro, de sangue e carne. Acordou a alma de lobo, grunhiu tristemente não se sabe o porque, talvez um resquício da gratidão condicionada pelos anos de convivência, pelas gerações anteriores de cães de guarda que vieram antes dele. O lamento foi o ultimo ato do cão doméstico e o despertar de uma fera ancestral.
Mordeu, mastigou, se satisfez.
Deitou as pés do sofá como sempre fazia, as orelhas atentas a qualquer ruído, era preciso montar guarda, protegia não o homem o dono, mas a comida. Havia muita carne ali e não deixaria que os ratos pegassem nenhum pedacinho do que era seu.
Conto Desencanto
Há 7 anos
Forte!
ResponderExcluirUm filme. O horror urbano dos cárceres humanos.
Estou impressionada com a tua escrita.
Impressionante e real. Algo possível ao real de nosos dias.
Abraços e bom feriado.
monta-se guarda de acordo com a necessidade né?
ResponderExcluirbeijos
engraçado.. parece uma descrição despretensiosa do mercado de trabalho, não?
ResponderExcluire o dono seria o patrão, Sandra?
ResponderExcluirPorra, histórias de cachorros ESQUILO! me deprimem. Ainda mais essa, meu irmão.
ResponderExcluirgrande abraço
Fico só pensando quanto tempo Pitanga resisiria. Acho que por todo amor intenso por mim, e pela capacidade dela renegar sua caninidade para ser gente, a resposta seria: três horas.
ResponderExcluirAntes das quais ela me tiraria o décimo terceiro, o direito as férias, plano de saúde, fechando o cerco até que eu, finalmente, meu cadáver não aguentaria e aderia a demissão voluntária.
Você me conhece, e sabe como é a minha relação com cadáveres nas histórias: morreu, se fodeu.
Beijos