domingo, 16 de julho de 2017

Mais Black do que Bloc.
- Tem que protestar mesmo, só tem ladrão, muita coisa errada, o povo tá deixando de ser bobo.
- Eu é que não me meto no meio daquela confusão não, cheio de baderneiro quebrando as coisas.
- Ah esses aí a polícia tem que cair de pau mesmo, bando de desocupado, quebrando loja, tacando fogo nas coisas... Isso aí e gente que quer é bagunça, confusão. Tem que manifestar, mas em quebradeira.
- Tu fala aí essas coisas, mas duvido que vai lá manifestar.
- Vou não, isso é pra juventude, a patroa vai liberar mais cedo pro pessoal ir, mas eu vou é pra casa ver meus meninos.
A conversa das duas mulheres entra pelos seus ouvidos misturando-se ao som metálico do trem lotado deslizando pelos trilhos. Marlon fecha o livro. Ler nunca foi algo que lhe desse prazer, ainda mais aquelas letras pequeninas espremidas nas páginas amareladas, como as pessoas espremidas nos vagões do trem.  A maioria delas mergulhadas nas telas de seus próprios celulares, outras como as duas senhoras ao seu lado passam a viagem a tagarelar, outros conseguem, mesmo de pé e com o trem balançando, jogar cartas.
Giza lhe deu esse livro da última vez que se encontraram. Ela sempre foi de ler, garota inteligente, estudiosa que conseguiu driblar todas as dificuldades e ingressou numa faculdade. Ele tentava ler o livro para ter algo com o que conversar com ela, como faziam quando eram mais novos. Mas aquelas palavras não lhe diziam muita coisa, letras espremidas no papel carregando ideias que ele tentava sem sucesso espremer para dentro de sua cabeça. Desistiu... Talvez não tenha nascido para aquilo mesmo.
O dia passa rápido no trabalho, há uma certa ansiedade nas pessoas do centro da cidade nesse dia. O patrão mandou fechar a loja uma hora mais cedo, para montarem um tapume improvisado, tentativa de proteger a fachada.
- Parece até que vai ter bloco – diz um amigo do trabalho
- O patrão está com medo é do quebra-quebra, black bloc e tal. Responde outro.
Marlon fica calado, como sempre.
Terminam o tapume e ele se despede dos companheiros de trabalho. A s ruas já estão se enchendo de gente, mas nesse dia a maioria das pessoas não está apressada para retornar para casa, pelo contrário elas estão vindo de várias regiões da cidade para o centro.
Ele encontra Giza e os amigos dela num boteco. Os cumprimenta com apertos de mão e a ela com um abraço. Uma garota está falando, dando instruções. Algo sobre não se precipitarem, sobre esperar a policia agir primeiro, sobre câmeras... Ele não presta atenção. Está observando Giza, ela está atenta a outra menina que discursa e de braços dados com o pela-saco barbudo, um professor da universidade que toma a palavra.
O Barbudo é um pouco mais velho se chama Bruno, fala sobre sua experiência como ativista, de como já enfrentou a policia diversas vezes, mostra cicatrizes. E continua um discurso motivacional, mas Marlon não está mais ouvindo, sua atenção está de volta em Giza e no olhar de admiração que ela lança ao orador. Um olhar que ele nunca recebeu.
O Grupo sai do boteco e se mistura a multidão em marcha. Eles passam por pessoas com cartazes “Fora Cabral”, “Não vai ter Copa”, “Fora Dilma”, “Fora Renan” “Fora Feliciano”, “Mais educação, Saúde e coisa e tal”. Na multidão há de tudo: Senhoras animadas, Meninas tirando selfies, amigos bebendo como se estivessem numa festa. Muitas vozes, muitas causas, ou nenhuma.
Giza está sorrindo, grita palavras de ordem, ergue os punhos. O barbudo está com a cara fechada.
- Olha só a pequena burguesia brincando de protestar, posando para foto de facebook. “O gigante acordou” eles escrevem nos cartazes. Mas nós nunca dormimos, estivemos sempre aí lutando em defesa dos pobres dos oprimidos por esse sistema cooptado pelo capitalismo neoliberal. Eles dão volume às manifestações, mas também tiram o foco dela e repercutem esse discurso de vandalismo propagado pela grande mídia, como se a polícia não fosse violenta por si só, como se só agisse com violência quando agredida.
Giza concorda efusivamente com ele, O que aumenta a antipatia que Marlon sente do Barbudo. Ele tem certeza que não compreendeu tudo o que foi dito, mas se sente impelido a discordar. Política para pobre é só quando candidato aparece na comunidade oferecendo asfalto em troca de voto. E quem o pela-saco acha que é para entender de violência policial? Nunca levou um tapa na cara só por ter “cara de bandido”, nunca foi obrigado a desembarcar de um ônibus, nunca deve ter tido a casa invadida por polícia. Na favela as balas não são de borracha e apanhar da PM não é motivo de orgulho é humilhação.
- E quem te deu procuração para falar pelos pobres, professor? - De forma inconsciente, ele o chama de professor para deixar bem claro que há uma diferença entre eles, que não são iguais, da mesma maneira que se refere a alguém como “doutor”.
Bruno o olha com certa supresa, mas lhe responde com ar professoral - Não precisamos de procuração, é dever do homem esclarecido agir diante da injustiça. Quando luto para melhorar o mundo é para todos e não só para mim e o maior problema do mundo é a desigualdade de riquezas.
Giza sai em defesa dele: - Marlon, É preciso compreender como o mundo funciona, com a sociedade é manipulada pelos poderosos, Olhe ao redor, olhe quem são as pessoas que estão aqui. Nenhum dos nossos amigos que eu convidei veio, só você. Precisamos nos engajar mais e lutarmos por nossas próprias causas sim, mas de forma consciente para não sermos manipulados. Vou montar um grupo na nossa comunidade e o Bruno está me ajudando nisso. Leia o livro que lhe dei que você vai começar a entender.
- Toda essa gente está aqui por algum motivo, e você Marlon? Porque você está aqui? – Diz o barbudo o encarando fortemente.
Marlon não tem uma resposta articulada para dar então deixa a raiva e a frustração falarem por ele – Vim porque a Giza me chamou... E porque a minha vida é uma merda desde que me entendo por gente, então se alguém aqui tem o direito de gritar e quebrar essa porra toda, esse alguém sou eu!
Os gritos e palavras de ordem se intensificam é impossível continuar a conversa e Marlon agradece por isso, em um ponto cantam o hino nacional, em outro gritam contra a polícia. A multidão se aproxima da prefeitura.
As pessoas se espremem como no trem, as palavras que eles dizem se misturam e, como nas páginas do livro, se tornam indecifráveis para Marlon é tudo um zumbido. Em algum lugar um morteiro explode. Sua deixa.
Ele tira da mochila uma outra camisa e cobre o rosto, se torna invisível mais uma figura sem rosto e identidade no meio da multidão, como sempre foi.
A confusão começa. Ele recolhe pedras do calçamento. As atira conta polícia. Morteiros explodem no céu e na calçada, as pessoas correm para longe ele corre em direção aos soldados, enfrentando.
Preto, pobre e suburbano, ele sente que hoje pode dar o troco. Cada pedra lançada é uma lembrança: o irmão preso, o esculacho com tapa na cara, a avó morta no corredor do hospital. Quando uma vidraça de agência bancária explode, ele se lembra das inúmeras vezes barrado na maldita porta giratória. Hoje é a porta deles que está sendo arrombada.
Outros Mascarados xingam e atiram morteiros e pedras, Ele está entre eles, mas ao mesmo tempo está só, como sempre esteve.

Ao seu lado outro mascarado cai atingido por uma bala de borracha. A nuvem de gás lacrimogênio sobe espessa, seus olhos ardem e sua visão fica nublada, como ela sempre esteve. A multidão se dispersa de vez enquanto a polícia avança... E ele a encara pronto para se defender apenas com a angustia, a raiva, a frustração e suas boas intenções, como sempre fez.

Nenhum comentário:

Postar um comentário